Minha revolta é constante, pois sofro constantemente também. É um sofrimento que cresce com a gente, parece infinito, longo, denso, profundo, e é. Com o passar dos anos nós temos a certeza que o racismo nunca irá cessar, enquanto o capitalismo não ruir, pois o racismo é uma construção social e uma das bases do sistema capitalista, sem o racismo, por exemplo, o capitalismo perde se sentido, mas isso é pano para manga de futuros posts (capitalismo & racismo).
Esse sentimento é doloroso na infância e não se torna menos doloroso com o passar do tempo, pelo contrário, ele se intensifica na adolescência e continua a atacar violentamente na vida adulta. Li um excelente texto em algum lugar, mas não lembro qual, falando que homens negros tem mais chances de serem mortos pela polícia e/ou pela criminalidade, mais chances de morrer do que as mulheres negras. E isso é possível de contemplar pelas ruas onde andamos, em qualquer lugar por aí, vemos muito mais mulheres negras do que homens. Mas isso não significa que o sofrimento das mulheres negras seja menor, não significa que nos "matam menos", todos os dias, seja na TV, seja na música, seja nas ruas, seja aonde for. Negros são assassinados todos os dias, nossa cultura, nossa religião, nosso povo. Não sobra nada intacto, não importa a idade, posição social, status, profissão, sexo, lugar, todos são mortos, todos os dias.
Jamila, eu e Victor
Gostaria de falar sobre tanta coisa, mas vou me pautar ao racismo na adolescência, uma época de transformação, de mudança comportamental, sexual, corporal, mental, enfim, uma época de dúvidas, temores, curiosidades e, também, um período propício para reafirmar na sociedade valores fúteis, alienações a respeito de família, sexo, amor, vida, carreira, dinheiro, preconceitos e discriminações. Os adultos aproveitam das dificuldades que se enfrentam nessa fase da vida para distorcer conceitos e transformar a cabeça da juventude num antro dominado e esses adultos que cito são representados pelos adultos dominantes da nossa sociedade capitalista. Não falo de um pai pobre da favela, por mais que ele influencie seus filhos, falo dos patriarcais das grandes famílias, que dominam não só as suas família, mas também as famílias de milhões e milhões de pessoas espalhadas por todos os lugares possíveis. São as grandes corporações, as grandes empresas, as grandes mídias, que influem pesadamente na cultura, na vida social, nos valores e nas cabeças, principalmente, nas cabeças dos jovens mais influenciáveis.
Esse período da vida é um período de descobertas, descobertas essas provenientes para se entrar no mundo, enxergando, sem as mentirinhas do tipo "papai noel existe", mas começando a notar que o mundo é realmente muito cruel e não é aquele sonho de criança que um dia a gente sonhou. Se a infância já é complicada, quando você é uma garota negra, entrar na adolescência não é lá tão legal. Aí é o momento que você tem a certeza que você não é só feia, mas também é errado ser assim, é impróprio, nojento e asqueroso. Esses são alguns sentimentos que começamos a sentir por nós, quando, convivendo em sociedade, nos remetem a isso intensamente, as pessoas nos dizem isso de várias formas o tempo todo (seja pelo olhar, pelos gestos ou pela boca mesmo). É uma atenção redobrada com tudo: cabelo, roupa, peso, cheiro. É tudo muito pior. Já deixei de sair por causa disso, e sair para ser chacotada, não é legal.
Eu
Você já se sente humilhada por achar que não está a altura das meninas brancas, por todas as questões estéticas que a sociedade impõe, e aí, para se enquadrar vem primeiro a sua reafirmação enquanto pessoa e, depois, enquanto mulher. Nessas reafirmações, negamos algo (muitas vezes) desde a infância: a negritude. Rejeita-se o cabelo, mas não só o seu, os das outras meninas negras também, anula-se a cor fazendo/participando das piadas, comentários denigridores racistas, recrimina as religiões, adotando religiões européias e criticando friamente e duramente as religiões de matriz africana, ou seja, o negro torna-se racista para negar a negritude que tem em si, se sentir mais branco, se sentir menos inferiorizado inferiorizando os outros negros, se auto-chamando de macaco para querer dizer aos brancos: quero ser igual a vocês, não sou igual a eles, aceito ofensas, estou aqui para fazer parte do grupo e essa é minha contribuição.
Minha avó de consideração, Cirema, tinha "amigos" que viviam a chamando de macaca, preta fedida, e ela não só aceitava como se intitulava assim, ela se auto-promovia assim, e eu achava ridículo, nunca aceitei essa submissão, mas há uma uma espera da parte dos colegas brancos acerca dessa negação do negro, eles já esperam que o negro vá permitir uma "brincadeira", uma "piada", e quando você, negra, não aceita, você é a racista, você não sabe brincar, você não entende contexto, você não entende piada.
O clímax da adolescência é a descoberta do corpo, do amor, do sexo, o primeiro namorado e coisas do gênero. E para uma adolescente negra, essas características da fase se apresentam de forma dolorosa. Falo da minha situação, de aluna de escola particular, convivendo com muitos brancos a vida inteira, influenciada por uma cultura eurocêntrica. Garotos, de qualquer cor, não querem meninas negras, e quanto mais negra você for, pior. Os negros tem síndrome de Cirilo; os brancos, em sua maioria, são racistas, tem vergonha se vistos com uma garota negra; os pardos, asiáticos, etc, também não dão a mínima, de vez em quando aparece um cara legal, mas isso é raro. Adolescentes da minha época, começo dos anos 2000, queriam meninas brancas, com cabelos longos, magras, ou seja, o padrão, a norma, a regra. Eu, sendo negra, de cabelos curtos, esquelética, não iria atrair caras que mentalizam a loira capa da playboy do mês, e esse estigma é eterno.
Galera do Guima
Sentados (dir. p/ esq.): Jamila, Eduardo, Guido e eu
Deitados: Zélia, Vitor, Patrícia e Douglinhas
Gostei de alguns garotos do bairro, outrora da escola. Alguns (poucos) negros, outros não, a maioria pardos e brancos. Mas a rejeição era a mesma. Tenho ótimas histórias de rejeição. Comecei a gostar de um amigo meu, vizinho desde a infância, e que sempre demonstrava apreço por mim, que era o André (branco). Por ter tentado ficar com meu colega de escola, Eduardo (pardo), sem sucesso, investi no tal do André. Então, no meu aniversário de 16 anos, eu o convidei. Como não havia feito festa de 15 anos, pois não tinha dinheiro, e também havia desistido da palhaçada debutante, planejei um aniversário bem divertido de 16 anos. Contratamos karaokê, que para minha família era caro demais, fiz uma festinha simples bem legal. Chamei meus colegas, minhas colegas, e enfim, André ficou com a loira Gabriele e Eduardo ficou, não sei, com a morena Rany. E eu fiquei sem entender nada. Hoje entendo tudo.
Esse Eduardo, colega meu até os dias de hoje, foi o carinha que realmente gostei, na época dessa festa de aniversário de 16 anos tinha meio que desistido dele, já havia enchido o saco, desde o ano anterior, primeiro ano do segunda grau, tentava ver se rolava algo, ele parecia dar mole, sei lá, mas parecia mais ainda ter vergonha de deixar algo acontecer, hoje eu tenho convicção do racismo internalizado ali, nele, neles, enfim... Sofri. Gostei dele durante alguns anos - mas sempre de olho também em outros carinhas. A coisa foi complexa pra mim, isso porque acredito que gostei dele pra valer, sabe, aquela paixonite aguda ridícula da adolescência, e olha que o cara nem era um dos mais bonitos, mas o fato dele ser legal comigo me deixava encantada. Conheci Eduardo no Guimarães Rosa, uma escola particular de ensino médio de Cachoeiro. Eu era bolsista e a maioria dos meus amigos do CIAC (ensino fundamental) foram estudar lá também, então era familiar o clima, porque já conhecia muita gente presente ali. Tínhamos 15 anos, e entramos para o grupo de teatro da escola, e foi lá que começou a intensificar nossa amizade. Ele não era bonito, como já disse, mas era "interessante", sei lá. Garotas se interessavam por ele com facilidade, garotas brancas, então, comigo nem chance. Como éramos amigos, íamos às mesmas festinhas, cinema, etc., ele sempre ficava com alguém, eu ficava mal, mas fazer o que?! Ele tentou ficar com minha "prima" Rany (e vice versa), isso depois de saber que eu gostava dele. Não sei se ficaram, mas acho que deveriam ter ficado sim e eu não devia ter me metido nisso NUNCA. Mas foi aí que comecei a desconfiar da amizade dele, da conduta comigo, jeito de lidar, desconfiei sim, achei uma amizade barata, fugaz, vulgar, desconfiei se não queria só sexo com ele, desconfiei se ele gostava ou não de mim, se ele queria que eu insistisse, desconfiei que era racismo. Porém, não o julgo pelas escolhas que fez, afinal, ele tinha a certeza que não ficaríamos juntos, que éramos somente amigos, e eu não iria - nem vou - julgar seus motivos, até porque ele os teve e ninguém é obrigado a gostar de ninguém. Mas sempre vou julgar os meus: Porque fui gostar dele e acabar com a nossa amizade? Porque disse a ele que estava afim? Porque não me valorizei mais? Tenho um ARREPENDIMENTO enorme e uma vergonha ainda maior do que senti por ele, queria pedir perdão, apesar de saber que não foi crime o sentimento. Tenho vergonha de garotas como eu passarem por isso, vergonha por mim, de mim. Vergonha por ter insistido, por ter falado, por ter me exposto tanto, por ter sentido aquilo por alguém que não sentia o mesmo por mim, por ter dito eu te amo sem saber que era real (ou era real?), por ser negra também. VERGONHA. Então, o tempo foi passando, ele foi fortalecendo o discurso "é SÓ amizade", e fui entendendo isso, na marra, no choro, até que o meu primeiro beijo aconteceu, e Eduardo foi ficando menor. Foi duro para mim, pois, como já disse, havia uma esperança no fim do túnel, ele se mostrava muito presente na minha vida e era uma pessoa maravilhosa, inteligente, mas o encanto acabou (Ufa!) e eu fui me afastando também para dar tempo ao tempo. Até porque não sabia ao certo que merda de sentimento era aquele. Ele foi um "amigo", apesar dos pesares, mas olhando hoje, sei não. Fica a dúvida de tudo, e é bom duvidar, sempre.
Eu, Victor e Jamila
O primeiro beijo aconteceu, catastroficamente, aos 16 anos, na festa da cidade na exposição. Fui beijada a força por alguém, loiro dos olhos azuis, sei lá, Alfredo alguma coisa o nome dele. Nunca mais o vi. E foi um beijo horrível, mas foi um beijo, pelo menos me senti alguém. Depois, cheguei a me interessar por outros caras, mas nada acontecia. E eu era a pessoa que chegava, ou mandava alguém chegar, e não me arrependo dessa minha posição (só com o Eduardo que me arrependo). Era isso mesmo. Não sei se isso assusta os caras, mas sei que o susto de muitos deles era com a minha cor, com o fato de que uma garota negra está afim deles, quase um crime.
Saí do Guimarães Rosa no meio do segundo ano pela depressão que me consumia na época (com essas feridas abertas e outras se abrindo, eu perdi o chão, tentei suicídio, me flagelava), pelo time de handebol que eu ODIAVA (era um monte de gente chata, que me odiava também, sei lá porque, sabe, eu tava (estou/vivo) sempre nessa situação, pessoas me detestam e eu, só pra garantir, odeio pessoas também, gosto de uma ali outra aqui, mas odeio gente), pelo Eduardo, pois não estava conseguindo me concentrar por essa rejeição, pelas amizades que se mostraram frágeis (não tinha apoio, não tinha muita palavra de conforto, não sentia esses amigos), e fui em busca de novos ares, novos amigos, nova vida. Não mudou muita coisa, mas tenho orgulho de ter me afastado daquilo tudo que me fazia tão mal, pelo menos beijei, vive, gozei com quem queria gozar, beijar e sorrir comigo.