Fui para o CIAC aos 4 anos de idade e estudei lá até os 14 (do jardim à 8ª série), antes havia passado pelo maternal Bem-ti-vi, que era próximo à minha casa, no Ibitiquara. Mudei para o CIAC após a professora contar a historinha da Chapeuzinho Vermelho na escola, fiquei desesperada com a morte da vovozinha, cheguei em casa aos prantos e minha vó Maria não estava em casa. Nunca mais quis voltar para a escolinha. No CIAC, uma escola maior, comecei realmente a sentir o preconceito, antes parecia que estava tudo sobre controle, eu lá, com meus 3 ou 4 anos, no meu bairro, na minha casa, no meu território, e tudo ia bem, as pessoas dali gostavam de mim, eu gostava das pessoas e pronto. Fácil Viver é assim... Só que não. Saindo do Bem-ti-vi, e 5 anos depois, saindo do bairro Ibitiquara para o IBC, convivi com várias outras crianças, e é aí que posso afirmar, começou os maiores traumas.
Quero ratificar aqui que o CIAC foi para mim uma escola maravilhosa, apesar de alguns deslizes e erros, conheci amigos para vida toda, pessoas ótimas, tive vivências e experiências também maravilhosas, no mais, o que vivi de bom foi superior, mas não posso deixar de me queixar de várias problemáticas.
Nos primeiros anos os problemas eram basicamente as briguinhas bobas por causa do lugar e coisas assim. A gravidade começou a surgir na primeira, segunda série, quando já dividíamos determinados espaços com os alunos mais velhos. Nesses anos, na minha turma, havia eu e Tiago Peçanha de negros, alguns mulatos e pardos, outros brancos, mas negros mesmo somente eu e ele. Então ficavam nos associando, implicando. Depois entraram outras crianças negras, esse Tiago acho que saiu da escola, mas a implicância ainda caía sobre mim, meus traços característicos bem aparentes - cabelo, nariz, boca, magérrima, alta.
Havia, na primeira série (e na segunda, e na terceira) um tal de Renato, sim, que me batia muito na sala de aula e me ofendia também. Uma vez ele me deu um soco na boca do estomago, eu tinha 7 anos, e aquilo doeu muito, passei a aula toda sentindo dor. Daniel era outro que começou a atuar junto com Otávio e um outro babaquinha, que agora não lembro o nome, eles gostavam de pensar que eram superiores, mas chegavam com o uniforme sujo e rasgado para a aula, fediam e mal conseguiam ler um texto. Aham! Isso foi mais ou menos na segunda série, estava com 8 anos e me mudando para o IBC.
Para as meninas e mulheres negras o racismo é mais complicado, porque entra o fator estético feminino de beleza que não enquadra mulheres negras, então você está errada de ser negra desde sempre. Seu cabelo, nariz, boca, bunda, tudo errado. E você é julgada por isso desde criança, como se as meninas fossem obrigadas a sumirem do mapa por não se enquadrarem no padrão eurocêntrico de ser, como se meninas negras não tivessem condições de viver em sociedade, fossem um ser a parte que não evoluiu, um bicho pronto para ser escravizado, como se não tivessem dignidade para poder respirar o mesmo ar que crianças brancas. Meninas negras tem que conviver com a "feiura", o "errado", o "anormal" muito cedo. Nos concursos de beleza realizados em sala de aula lá pela terceira, quarta série, eu ganhava como a mais feia, e na boa, olhando as fotos tava todo mundo no mesmo patamar. Mas nem todos eram negros como eu.
O racismo ganhou força após essa mudança de bairro. Tanto na escola como no bairro, o tempo foi passando e o preconceito foi se tornando mais constante, intenso e violento. O ódio que a sociedade tem de pessoas negras tornou-se claro ali, entre os 7 e 10 anos. Depois disso já havia a certeza que - na minha cabeça - pessoas brancas são más, e só são porque sentem tesão por serem más. Não mudei muito de opinião. O tempo não deixou.
Aproximadamente na mesma época, ia à padaria e tinha que escutar do Miro (padeiro conhecido da família) que eu quando crescesse tinha que casar com um homem branco para melhorar a raça, isso entre outras coisas do gênero. Ouvi isso durante uns quase 10 anos da minha vida, da mesma pessoa, quase todos os dias, e fui entrando na adolescência foi ficando pior, porque viraram elogios à beleza da futura mulher NEGRA + um monte de absurdos. Eu respondia, sempre (ou quase sempre) reclamei, gritei, xinguei, bati, nunca fui de levar desaforo pra casa, me arrependo de todas às vezes que levei, mas em algumas ocasiões passavam coisas despercebidas, pois, como criança eu nem notava, e as pessoas ao meu redor tentavam minimizar, mas dentro de mim já havia um grande tumor de estrago feito.
Eu tinha uma professora Sabrina que não me deixava reclamar quando ocorria alguma coisa na sala de aula. O negócio era tão feio que a coordenadora, Morena, já estava avisada dos preconceitos direcionados à mim. Se não me engano uma vez saí de sala (nem pedi permissão) e fui pra coordenação, porque não aguentava mais. Eram muitas ofensas, que iam de macaca à agressões físicas. Como já disse anteriormente, respondia, batia, xingava, e essa minha agressividade durou até a sétima, oitava série. Posso dizer que na oitava já estava bem mais calma, mas foi graças a essa minha agressividade, ira e despeito que sobrevivi, ganhei respeito e confiança.
Tive muitos problemas, era com Daniel Pereira, Emanuel, Otávio, Renato, Leonardo Vieira, Lucas, etc, etc, etc. Percebam, meninos. Haviam meninas também, algumas me torravam o ovário, principalmente as mais velhas, que estavam anos a frente. Passei por tanta coisa que nem me arrependo de ter agredido tanta gente que não tinha nada a ver. Bola de neve. Ação e reação. Vida. Sobrevivência.
Eu apanhei, fui muito ridicularizada, humilhada, discriminada, e por isso também ganhava apoio em casa para revidar as agressões, fico feliz de minha madrinha sempre ter me aconselhado a me defender, do jeito que fosse, mas não levar desaforo para casa. Tenho orgulho disso.
A situação do racismo é tão complexa que, posso afirmar, sofri discriminação racial, preconceito, de TOD@S as pessoas com quem convivi, todos. Com certeza, tive amigos maravilhosos, conheci muita gente boa, humilde, educada, digna. Tive problemas graves com alguns nomes citados acima, outros nem lembrei e nem lembrarei para citar, mas racismo eu sofri nas mãos de praticamente todo mundo que convivi, direta ou indiretamente, de uma forma ou de outra, velado ou descarado, vem ocorrendo pelo caminho.
Acredito que, ter sido uma criança reservada e violenta só me ajudou perante essa sociedade cruel que vivemos. Sejamos cruéis também.
Fotos: Minhas turmas do CIAC.
Essa época (anos 80 e 90) foram um inferno para as crianças...
ResponderExcluirMinha vergonha de Cachoeiro está justamente nas pessoas. Descobri que adoro a cidade, mas o povo é repugnante, assim como o 99% do ES...